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Desenho: Marie-Thérèse Pfyffer
Quem nunca
leu, pelo menos ouviu falar. Súmula de histórias milenares com registro em
forma de escrita que remonta aos séculos XII e XVI – relatos árabes, persas ou
sírios, fundidos com outros ainda mais antigos, de origem hindu –, As mil e uma
noites é um tesouro do imaginário popular da humanidade, com suas aventuras de
sultões, califas, princesas encantadas, tapetes voadores, marujos perdidos (como
Simbad), ladrões com seus bandos (Ali Babá e os quarenta ladrões), histórias,
enfim, para todos os tipos de leitores. Caberia a nós escolher uma dessas
histórias. Optamos pelas andanças marítimas e em terra firme (firme, porém
insegura) de Simbad, o marujo – ao encontro do desconhecido. (A grande aventura
do homem é o desafio de entender o outro de cultura diferente da nossa?)
Os muitos prazeres e divertimentos que por
acaso gozei depois da minha terceira viagem não chegaram a ser atrativos
suficientes para me impedir de viajar mais uma vez. Além disso, me deixei ainda
levar pela paixão de vender mercadorias e de conhecer coisas novas. Dispus,
pois, dos meus negócios, e, com um sortimento de fazendas consumidas nos
lugares para onde tencionava ir, parti.
Tomei o
caminho em direção à Pérsia, cujas províncias atravessei quase todas, e cheguei
a um porto marítimo; de lá embarquei num navio. Sim, fizemo-nos à vela, e
tínhamos já aproado em alguns portos da terra firme e em algumas ilhas
orientais, quando um dia, depois de um longo trajeto, fomos acometidos de uma
rajada de vento que obrigou o capitão a mandar amainar as velas e a dar todas
as ordens necessárias para prevenir o perigo que nos ameaçava. Mas todas essas
cautelas resultaram inúteis; não sendo a manobra bem-sucedida, as velas
fizeram-se em mil pedaços, e, não podendo mais o navio ser governado, deu em
seco e despedaçou-se de tal modo que muitos mercadores e marinheiros se
afogaram – e perdeu-se toda a carga.
Tive, assim
como outros mercadores e marujos, a felicidade de me agarrar a um pedaço de
madeira. Fomos todos levados pela corrente a uma ilha perto de nós. Nessa ilha,
encontramos frutas e fontes d’água que nos ajudaram a restabelecer nossas
forças. Descansamos a noite toda no mesmo lugar onde o mar nos jogara, sem
pensar a respeito do que deveríamos fazer. O abatimento a que nos reduzira a nossa
desgraça não deixara lugar para tanto.
Logo ao
nascer do sol do dia seguinte, afastamo-nos da praia; internando-nos na ilha,
logo avistamos habitações aonde chegamos. Um grandíssimo número de negros veio
ao nosso encontro; fomos cercados por eles, que nos aprisionaram e nos
separaram numa espécie de partilha, levando-nos depois para suas casas.
Eu e cinco
dos meus companheiros fomos conduzidos para o mesmo lugar. Foram logo nos
mandando sentar, nos serviram uma erva qualquer e nos convidaram por gestos que
comêssemos dela; e meus companheiros, sem perceber que eles não a comiam, só
consultaram a fome que os apertava e serviram-se dela lautamente. Quanto a mim,
pressentindo naquilo uma armadilha, como de fato o era, nem sequer a provei, no
que fiz muito bem, pois, passado pouco tempo, percebi que meus companheiros estavam
fora do seu juízo e que, falando comigo, não sabiam o que diziam.
Aqueles
negros nos davam aquelas ervas para nos perturbar o espírito e nos tirar do
cuidado que o triste conhecimento da nossa sorte nos devia causar e, para
engordarmos, alimentavam-nos com arroz preparado com leite de coco, que meus
companheiros, já com a razão alterada, comiam sofregamente. Eu também comia,
com certeza, mas pouca quantidade. Sendo eles antropófagos, era sua intenção
devorarnos quando estivéssemos bem mais gordos, o que acabou acontecendo aos
meus companheiros, ignorantes de seu destino por terem o juízo prejudicado.
Visto que eu conservava o meu juízo, bem concluís vós, senhores, que, em vez de
engordar como os outros, eu emagrecia cada vez mais. Não me abandonava o receio
da morte e transformava em veneno todos os alimentos que me ofereciam. Caí numa
espécie de torpor que acabou me sendo útil, pois, tendo aqueles negros matado e
comido meus companheiros, contentaram-se
com isso, e, vendo-me seco, descarnado e doente, foram adiando minha morte.
Eu, no
entanto, tinha muita liberdade; eles praticamente não reparavam nas minhas
ações. Graças a isso, um dia me afastei das habitações nativas – e escapei. Um
velho que me viu e suspeitou de minha intenção gritou com todas as suas forças para
que eu voltasse; mas, em vez de lhe obedecer, corri mais ainda, e bem depressa desapareci
da sua visão. Não havia na aldeia senão aquele velho preto. Todos os outros haviam
se ausentado e só deveriam retornar no fim do dia, como costumava acontecer; e
foi por essa razão, certo de que não chegariam a tempo de vir atrás de mim
quando soubessem de minha fuga, que caminhei até a noite chegar, quando parei
para descansar um pouco e comer alguma coisa das provisões que trouxera comigo.
Mas não demorei em seguir meu caminho, e durante sete dias andei fugindo dos
lugares de que desconfiava ser habitados. Vivia à base de coco, que me dava ao
mesmo tempo de comer e de beber.
No oitavo
dia cheguei próximo do mar e avistei gente de pele branca como eu colhendo
pimenta, em abundância ali. Averiguei bem a ocupação deles e fui me aproximando
devagar.
Os homens
que colhiam pimenta vieram ao meu encontro e foram logo me perguntando, em árabe,
quem eu era, de onde eu vinha. Fiquei contente de ouvi-los falar como eu e de
boa vontade satisfiz sua curiosidade, e contei a eles como fora o naufrágio e
como chegara àquela ilha, onde caíra nas mãos dos homens pretos.
– Mas esses pretos – disse um deles – comem
carne humana. Qual milagre fez com que escapasses à sua crueldade?
Contei o
que já ouviram antes e eles ficaram maravilhosamente pasmos.
Fiquei na
colheita com eles até juntarem a quantidade de pimenta que quiseram, depois me
embarcaram no navio que os trouxera, que rumou para a ilha de onde tinham
vindo.
Lá
apresentaram-me ao seu sultão, que parecia um bom príncipe e que teve a paciência
de ouvir o relato da minha aventura, o que lhe causou admiração. Em seguida
mandou que me dessem roupas e ordenou que tivessem atenção e cuidado comigo.
A ilha em
que me encontrava era mui povoada e abundante em toda a sorte de coisas, e
fazia-se um grande comércio na cidade onde o sultão residia. Esse agradável
asilo consolou-me da minha desgraça, e as generosidades que aquele bondoso sultão
tinha para comigo me deixaram muito contente. De fato, não havia pessoa alguma
que tivesse mais cuidado que eu no seu espírito e, em consequência disso, não
havia ninguém em sua corte nem na cidade que não procurasse oportunidade de me
agradar.
E assim fui
eu bem depressa considerado homem nascido na ilha e não estrangeiro.
Observei
pelo menos uma coisa que julguei extraordinária: todos, e mesmo o sultão,
montavam a cavalo sem freio e sem estribos. O que me deu a liberdade, um dia,
de perguntar a eles por que sua majestade não se utilizava dessas comodidades.
Respondeu-me ele que lhe falava de coisas cujo uso se ignorava nos seus
estados.
Procurei a
oficina de um carpinteiro e pedi que armasse o pau de uma sela sobre o modelo
que lhe forneci. O pau da sela preparado guarneci-o eu mesmo de crina e couro e
enfeitei-o com um bordado de ouro. Dirigi-me depois a um serralheiro para que
executasse um freio segundo o modelo que lhe mostrei e pedi que fizesse
estribos.
Tudo isso
perfeitamente acabado, fui apresentá-lo ao sultão, e experimentei-o num de seus
cavalos. O príncipe montou e ficou tão satisfeito com minha intenção que me
manifestou a alegria que naquilo tinha, com grandes larguezas de espírito.
Não pude
deixar de fazer várias selas para os cavalos dos seus ministros e principais oficiais
do palácio, e todos eles me deram tantos presentes que me enriqueceram em pouco
tempo. Fiz selas também para os cavalos das pessoas mais gradas da cidade, o
que me granjeou, além de uma grande reputação, a consideração de todo mundo.
Como fazia
a vontade ao sultão em tudo o que era possível, ele me disse um dia:
– Simbad, eu te estimo muito, e sei que todos
os meus vassalos que te conhecem te querem bem, a meu exemplo. Tenho um pedido
a te fazer, e importa que me concedas o que te vou pedir.
– Senhor – respondi-lhe eu –, não há coisa que
não esteja pronto a fazer para mostrar a minha obediência a Vossa Majestade,
que tem sobre mim um poder absoluto.
–
Minha vontade é casar-te – replicou o sultão – para que o casamento te detenha
nos meus estados e não te
lembres mais da tua pátria.
Como não
ousaria resistir à vontade do príncipe, deu-me ele por mulher uma senhora de
sua corte, nobre e cordata, bela e rica. Realizadas as cerimônias de núpcias,
estabeleci-me em casa da senhora, com a qual vivi algum tempo em perfeita união.
No entanto, não estava muito contente com minha situação: era minha intenção
escapar na primeira oportunidade e voltar para Bagdá, de cuja lembrança não me
podia fazer esquecer o meu novo estado, por mais vantajoso que fosse.
Estava
vivendo com essa intenção quando a mulher de um dos meus vizinhos, com o qual
travara amizade mui estreita, caiu doente e morreu. Fui à sua casa para consolar
o marido e achei-o envolto na mais viva aflição:
– Deus vos guarde – disse-lhe eu, me
aproximando – e vos dê uma longa vida.
– Ai de mim – respondeu-me ele –, como quereis
que alcance a graça que me desejais? Não tenho já senão uma hora de vida.
– Ah!! – repliquei eu –, não deis entrada no
vosso espírito a tão funesto pensamento. Espero que tal não aconteça e que eu
tenha o gosto de gozar ainda de vossa companhia por muitos anos.
– Desejo – respondeu ele – que seja longa a
duração de vossa vida; quanto ao que me diz respeito, meus negócios estão
concluídos e asseguro-vos que hoje mesmo me enterram com minha mulher; tal é o
costume que estabeleceram os nossos antepassados nesta ilha, e que observam
inviolavelmente; o marido vivo enterra-se com a mulher morta, e a mulher viva
com o marido morto; nada pode valer-me, todos estão sujeitos à lei.
Enquanto
contava essa estranha barbaridade, cuja notícia me assustara cruelmente, os
parentes, amigos e vizinhos chegavam para participar dos funerais. Revestiram o
cadáver com suas melhores vestes, como no dia de noivado, e enfeitaram-no com
todas as suas joias. Colocaram-no depois num esquife descoberto e pôs-se o
cortejo em marcha. À frente dos enlutados caminhava o marido, seguindo o corpo
da mulher.
Pegaram a
direção de uma alta montanha e, ali chegando, levantaram uma grande pedra que
cobria a abertura de um poço profundo e nele desceram o cadáver, sem lhe tirar
coisa alguma dos seus vestidos e joias. Feito isso, o marido abraçou seus parentes
e amigos e deixou-se meter sem resistência num caixão com uma bilha d’água e
sete pães; desceram-no então da mesma maneira que tinham descido a mulher. A
montanha estendia-se ali diante de nós e servia o mar de limite – e o poço era
profundíssimo.
Acabada a
cerimônia, colocaram de novo a pedra sobre a abertura.
Não haveria
precisão, meus senhores, de dizer-vos que fui testemunha tristíssima desse
funeral. Todas as demais pessoas que a ele assistiram não me pareceram
comovidas, pelo hábito de repetidas vezes ver a mesma coisa.
Não
consegui evitar comentar com o sultão o que pensava a respeito daquilo:
– Senhor – disse-lhe eu –, nada poderia me
espantar mais do que o estranho costume
que se pratica entre vós, de enterrar os vivos e os mortos; viajei por muitas nações
e jamais ouvi falar de uma lei tão cruel como essa.
– O que é que tu querias, Simbad? –
respondeu-me o sultão. – É uma lei comum a todos, e eu mesmo estou sujeito a
ela. Serei enterrado vivo com a sultana minha esposa se ela morrer primeiro.
– Mas, senhor – disse-lhe eu –, ouso perguntar
a Vossa Majestade se os estrangeiros também são obrigados a seguir tal costume.
– Sem dúvida – replicou o sultão, sorrindo com
a minha pergunta. – Não estão isentos eles quando casados nesta ilha.
Com essa resposta, voltei triste para casa. O
receio de que morresse primeiro minha mulher, e de que me enterrassem vivo com
ela, me dava motivos para reflexões bastante desconsoladoras. No entanto, que
remédio dar a esse mal? Precisava ter paciência e reportar-me à vontade de
Deus. Mas tremia à menor indisposição que notava em minha mulher; ai de mim! Tive
logo o susto por inteiro: ela caiu doente e morreu em poucos dias.
Podeis
imaginar qual não foi a minha aflição! Ser enterrado vivo não me parecia um fim
menos deplorável que o de ser devorado por antropófagos. O sultão, acompanhado de
toda a corte, quis honrar com sua presença o funeral, e as pessoas mais consideráveis
da cidade me deram também a honra de assistir ao meu próprio enterro.
Quando
estava tudo pronto para a cerimônia, depositaram o corpo da minha mulher num
esquife, juntamente com todas as suas joias e seus melhores vestidos. O cortejo
começou.
Como
segundo ator dessa lamentável tragédia, seguia eu atrás do esquife, com os
olhos banhados em lágrimas e chorando o meu próprio e desgraçado destino. Antes
de chegar à montanha, quis testar o estado de espírito dos acompanhantes. Dirigi-me
ao sultão, em primeiro lugar, e depois aos que se encontravam à roda de
mim; e, prostrando-me na sua
presença para beijar a aba dos seus vestidos, supliquei-lhes que tivessem
compaixão de mim.
– Considerai – dizia eu – que eu sou
estrangeiro, que não deveria estar sujeito a uma lei tão rigorosa, e que tenho
outra mulher e filhos no meu país.
Por mais
ênfase enternecida que desse a essas palavras, ninguém parecia se compadecer de
mim; pelo contrário, se apressaram a descer o corpo de minha mulher ao poço, e,
passados alguns instantes, desceram também o meu, noutro esquife descoberto,
com um vaso d’água e sete pães. Por fim, acabada a cerimônia, colocaram a pedra
na boca do poço, indiferentes às minhas excessivas aflições e aos meus
lamentáveis gritos.
Com a pouca
claridade que vinha de cima, e à proporção que me aproximava do fundo,
descobria a disposição daquele lugar subterrâneo. Era uma vastíssima gruta e que
bem podia ter cinquenta cúbitos de profundidade.
Senti logo
um fedor insuportável que exalava de uma infinidade de cadáveres que eu ia
vendo à direita e à esquerda. Pareceu-me escutar, das últimas pessoas descidas
com vida, os últimos arrancos de sobrevida.
Chegando lá
embaixo, no entanto, saí logo do esquife e afastei-me dos cadáveres, tapando o
nariz. Joguei-me no chão e ali fiquei muito tempo, banhado em lágrimas e
refletindo sobre meu triste destino:
“É verdade
que Deus dispõe de nós segundo Sua Providência; desafortunado Simbad, não é tua
a culpa de se ver reduzido a morrer de morte tão estranha?” Quisesse Deus que
tivesses perecido em alguns dos naufrágios de que conseguiste escapar! Não
terias de morrer de morte tão vagarosa e terrível, em todas as suas circunstâncias.
Mas tu mesmo a procuraste por tua maldita avareza. Ah!, desgraçado! Não devias
antes ter ficado em casa a gozar em paz o fruto de teu trabalho?”
Tais eram
as inúteis lamentações com que fazia ressoar a gruta, batendo com raiva e
desespero na cabeça e no estômago, e entregando-me por inteiro aos mais cruciantes
pensamentos. Direi eu, no entanto, em vez de chamar a morte em meu socorro, por
mais infeliz que me achasse, fez-se ainda sentir em mim o amor da vida que me
induziu a prolongar meus dias.
Apesar da
escuridão na gruta, tão densa que impossível de distinguir o dia da noite, fui
apalpando em busca do meu esquife para pegar o pão e a água, e pus-me a comer e
a beber, notando então que a gruta era espaçosa e mais plena de cadáveres do
que a princípio me parecera.
Foi assim
que sobrevivi durante uns dois dias; no entanto, tendo acabado pão e água, me
preparei para morrer...
Pois só o
que eu esperava era a morte quando ouvi levantarem a pedra no alto.
Um cadáver
e uma pessoa viva foram jogados. O defunto era o homem. É natural tomar
resoluções extremas em circunstâncias extremas. No momento em que desciam a
mulher, fui para perto de onde seu esquife devia ser colocado e, ao perceber que
tapavam a abertura do poço, bati na cabeça da desgraçada duas ou três fortes pancadas
com um grande osso que encontrara ali à mão. Ela ficou atordoada, ou melhor,
assassinei-a; e, como não fizera essa ação desumana senão para aproveitar-me do
pão e da água que trazia no seu esquife, tive provisões para mais alguns dias.
E assim
foi: quando as provisões estavam terminando, logo desceram uma mulher morta e
um homem vivo, e matei o homem da mesma maneira. E por felicidade minha,
parecia que acontecera uma epidemia qualquer na cidade: não tive falta de mantimentos,
sempre usando a mesma artimanha.
No dia em
que eu acabava de matar outra mulher, ouvi alguma coisa soprar e um vulto se
locomover. Fui me aproximando de onde partia aquele barulho, e ouvi um sopro
mais forte ainda, e me pareceu antever alguma coisa que fugia. Segui então
aquela espécie de sombra que parava por vezes e soprava sempre, fugindo à medida
que eu me aproximava. Andei muito tempo no encalço daquela sombra, e fui tão
longe que avistei finalmente uma luz que parecia uma estrela. Segui a luz, perdendo-a
de vista algumas vezes, de acordo com os obstáculos que a ocultavam de mim; mas
tornava a achá-la, e por fim descobri uma abertura no rochedo, suficientemente larga
para que eu pudesse passar por ela.
Grande
descoberta a minha, e parei por um tempo para me refazer da violenta excitação
e decorrente do cansaço do muito que caminhei; e me aproximando até aquela abertura,
por ela passei e eis-me em plena beira-mar.
Quanta
alegria, senhores! Podeis imaginar? Tais foram as dificuldades que tive certo
trabalho para me convencer de que não era aquilo tudo sonho nem imaginação.
Convencido
de que era tudo real, restituídos os meus sentidos, que voltaram ao estado
normal, percebi que a coisa que eu ouvira soprar e que era vulto e sombra, que
eu seguia, era um animal saído do mar, que costumava entrar na gruta para alimentar-se
dos corpos mortos.
Olhei e
examinei a montanha e concluí que ela estava assentada entre a cidade e o mar,
sem ligação alguma por caminho ou trilha; porque era de tal forma encarpada que
a natureza a tornara inacessível por terra.
Deitei-me
na praia, prostrado, e agradecia a Deus a graça que acabara de me conceder.
Logo voltei
à gruta para buscar pão, que comi em plena claridade do dia, com vontade melhor
do que quando enterrado num lugar tenebroso.
Voltei
outra vez para, apalpando aqui e ali nos esquifes, apanhar todos os diamantes, rubis,
pérolas, braceletes de ouro, enfim, todos os ricos estojos que encontrava à mão – e carreguei tudo para a beira-mar. Fiz
vários pacotes e amarrei-os com as cordas que serviram para descer os esquifes,
e que eram muitas. Coloquei-os na praia, à espera de uma boa oportunidade, sem
temer que a chuva lhes fizesse algum dano, pois não era então a estação das
chuvas.
Depois de
dois ou três dias avistei um navio que acabara de sair do porto e que passava perto de onde eu estava.
Acenei com
o pano do meu turbante e gritei com todo o ar dos meus pulmões, até que
consegui que me ouvissem e então mandaram-me eles uma chalupa para me embarcar.
À pergunta
que os marujos me fizeram, por que desgraça da sorte me achava eu naquele
local, respondi que escapara de um naufrágio há dois dias, com os embrulhos que
viam; e tal foi minha fortuna que, sem examinarem o lugar onde eu estava nem se o que eu lhes dizia era verdade,
contentaram-se com minha resposta e me levaram com eles, eu e meus pacotes.
Assim que
cheguei a bordo, o capitão, satisfeito do favor que me fazia, e ocupado com o
comando do navio, teve também a bondade de acreditar no meu pretenso naufrágio.
Ofereci-lhe algumas das minhas joias, mas ele não quis aceitá-las.
Mar
adentro, passamos por várias ilhas, entre outras passamos perto da ilha dos Sinos,
afastada dez dias da ilha de Serendib, com o vento ordinário e regulado, e seis
da ilha de Kela, onde ancoramos. Há nessa ilha minas de chumbo, canas da Índia
e mui excelente alcanfor.
O sultão da
ilha de Kela é riquíssimo e poderosíssimo; sua autoridade estende-se também
sobre a ilha dos Sinos, a duas jornadas de distância, e cujos habitantes são ainda
tão bárbaros que comem carne humana. Depois de fazer muito comércio nessa ilha,
tornamo-nos ao mar e aportamos em outras localidades.
Por fim,
cheguei felizmente a Bagdá, com infinitas riquezas, cuja lista seria inútil
fazer-vos. Posso dar graças a Deus pelos favores que Ele me concedeu; dei grandes
esmolas, não só para a conservação de algumas mesquitas, como para a subsistência
dos pobres; e dei-me inteiramente a meus parentes e amigos, divertindo-me e
levando uma boa vida com eles.
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